#109 – Leitura de fôlego 1 – Livro licencioso = Leitura proibida

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Oxigênio

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  Márcia Abreu (MA): Ter um livro licencioso em casa, ou vender um livro licencioso, naquela época, era tão perigoso como hoje seria vender droga pesada. Laís Toledo (L): Devasso, libertino, desregrado, impudico, libidinoso, lascivo, indecente... Esses são alguns sinônimos para a palavra “licencioso”. Mas, afinal, o que é um livro licencioso? Por que era tão perigoso ler ou vender um livro desses no Brasil dos séculos XVIII e XIX? Como a censura de livros agia por aqui nessa época? O episódio de hoje trata de questões como essas. Quem conversa com a gente é a Márcia Azevedo de Abreu, professora e pesquisadora do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp. A Márcia tem desenvolvido pesquisas principalmente nas áreas de História do Livro e da Leitura e História da Literatura. Além disso, hoje em dia, ela também é Diretora Executiva da Editora da Unicamp. L: Eu sou a Laís Toledo, e esse é um episódio da “Leitura de fôlego”, uma série sobre Literatura pro podcast Oxigênio. Pra começar a conversa, eu pedi pra Márcia explicar o que é um romance licencioso. MA: Um romance licencioso era um tipo de narrativa, que misturava cenas de sexo, ou um enredo sobre sexo, com discussões filosóficas sobre religião, sobre a natureza. Não a natureza assim das plantas, a natureza num sentido amplo, como o funcionamento dos corpos, as diferenças entre as culturas e também sobre as questões de poder. Um exemplo clássico de livro licencioso é o Teresa filósofa. Nesse livro, tem um enredo amplo, que é a trajetória dessa moça chamada Teresa, e ela vai se defrontando com várias situações em que ocorrem cenas de sexo, mas a cada cena de sexo tem uma discussão, sobre uma questão de moral ou sobre o comportamento da igreja, ou sobre uma questão filosófica. Acabada essa discussão, volta a ter uma cena, um encontro sexual de algum tipo.  L: Vamos ouvir um trechinho do começo do livro Teresa filósofa, quando a narradora, a Teresa, aceita contar a história dela e diz que não vai esconder nada. A edição que eu tenho aqui é da editora L&PM, que tem tradução para o português da Carlota Gomes e um prefácio do filósofo Renato Janine Ribeiro.  Thais Oliveira: “O quê, Senhor! Seriamente, quereis que escreva minha história [...] Na verdade, caro Conde, isso parece estar acima de minhas forças. [...] Mas se o exemplo, dizeis, e o raciocínio fizeram a vossa felicidade, por que não tentar contribuir para a dos outros pelas mesmas vias, pelo exemplo e pelo raciocínio? Por que temer escrever verdades úteis ao bem da sociedade? Pois bem, meu caro benfeitor! Não vou mais resistir! Escrevamos! [...] Não, vossa tenra Teresa jamais vos responderá por uma recusa, vereis todos os recônditos do seu coração desde a mais tenra infância, a sua alma vai se revelar inteiramente nos detalhes das pequenas aventuras que, sem que percebesse, a conduziram, passo a passo, ao auge da volúpia.”  L: Ah, o Teresa filósofa foi publicado pela primeira vez em francês, provavelmente em 1748, e existia uma controvérsia sobre a sua autoria. Mas, hoje em dia, é forte a ideia de que o livro foi escrito por Jean-Baptiste de Boyer, o Marquês d’Argens. Bom, esse é um exemplo de livro licencioso, mas existem outros que seguem modelos um pouco diferentes.  MA: Tem alguns romances, que são mais focados na narrativa do sexo mesmo, como um que chama História de Saturnino, porteiro dos frades bentos. Esse, tem mais enredo e menos discurso, do que a Teresa filósofa. E, pelo título, já dá pra ver que o centro da discussão é o comportamento dos religiosos. Esse tema era muito frequente nos romances licenciosos. Eles ou se passavam ou dentro de conventos, monastérios, ou eles envolviam cenas de sexo com padres, abades, com as altas hierarquias da igreja. E tinha muito essa questão de apresentar os conventos como um lugar de devassidão, e não de religião ou de moral. Nesse caso, o ataque à igreja, à instituição da igreja, vinha pela apresentação do comportamento devasso,