[S01E02] No Café

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Crônicas do Fim do Mundo

Arts


O episódio "No Café", de "Crônicas do Fim do Mundo" foi produzido por Caio Salgado. Comentários, críticas e sugestões: caio@chsalgadofoto.com.br ou pelo Twitter: @chsalgado. Leia essas e outras crônicas no Medium. Acesse o link: https://goo.gl/tIGy6p Transcrição A cafeteira apita com o vapor de água. A única garçonete em serviço deixa uma xícara cair e se despedaçar no chão. Um senhor se assusta e derruba metade de seu expresso. No fundo do estabelecimento, à penumbra, estou eu, olhando diretamente para a porta de madeira, que não se move. O meu pedido chega. Café preto, sem açúcar. É o momento de esquecer o cheiro de esgoto que toma a cidade e me debruçar em 200 mililitros de calor e amargor. Eu engulo a bebida fervente enquanto olho para a porta, imóvel. O Café dos Andes já foi o melhor do Estado. A pequena entrada, hoje escondida por anúncios de apresentações de strip-tease, atraía turistas interessados em conhecer o pequeno oásis com aroma de café no meio da avenida mais movimentada da cidade. Mas, desde que o Seu Hiroshi faleceu, acho que só eu me sinto confortável aqui. Eu confiro as horas. Sete e quarenta. Eles estão dez minutos atrasados. Eles nunca se atrasam. A porta range antes de se abrir. Eu tiro os olhos do café. Uma jovem morena, alta, e com sapatos vermelhos pede um cappuccino para a viagem. Ela sai. O senhor que derrubara sua bebida há alguns minutos sai. Eu permaneço, olhando para a porta e a porta imóvel. Tento não olhar para o saco de papel que está no chão, ao lado do meu pé esquerdo. Contudo, é impossível ignorar o conteúdo que motivou o encontro dessa manhã. Eu o confiro, pela terceira vez em vinte minutos. Está tudo lá. Exceto eles. Quando marcamos reuniões como esta, no fim das contas, queremos que elas não aconteçam. Queremos que elas não aconteçam até que alguém se atrasa. Queremos que elas não aconteçam até que estamos aqui, às sete e cinquenta, torcendo pelo ranger da porta. Um estalo me chama a atenção. Dessa vez não foi a xícara de café que caiu. Na rua, gritos. Mais estalos. Mais gritos. Eu regurgito o café, que sobe tão quente quanto estava no momento em que o engoli. A porta não se move até que, através do pequeno quadrado de vidro, cercado por uma moldura de madeira, eu vejo o que está lá fora. E eu vejo um rosto. O rosto de um deles. Pálido. Ele olha nos meus olhos antes de deslizar e fazer a porta ranger. Ela range. Meu estômago range. Meu corpo treme. Eu me levanto e caminho para o banheiro. O espaço cheirava a urina velha. Seca. Na privada: fezes. Eu me sento. Tiro um 38 do meu coturno. O banheiro fede, meu estômago embrulha. São oito horas e nada mais importa.