"O diálogo é sempre melhor do que uma guerra"

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O chefe de Estado francês, Emmanuel Macron, e o homólogo russo, Vladimir Putin, reuniram-se ontem, em Moscovo. O encontro durou cinco horas e serviu para tentar desenhar uma solução política para a crise ucraniana. José Milhazes, escritor e antigo correspondente em Moscovo, fala das distâncias que separam os dois homens políticos, ainda assim reconhece que qualquer tipo de diálogo é sempre melhor do que uma guerra.  RFI: O que se pode reter deste encontro?  José Milhazes: O diálogo continua e qualquer tipo de diálogo é melhor do que uma guerra. Claro que a mesa e as suas dimensões podem ser uma imagem da actual situação das relações entre a União Europeia e a Rússia. Ainda estão muito longe de ter uma posição semelhante, ou comum, em relação à segurança europeia. O afastamento entre a União Europeia e a Rússia pode ser representado pela distância entre Putin e Macron, sentados a cerca de 8 metros de distância.  No final do encontro o chefe de Estado francês falou de garantias concretas de segurança para todos, sublinhando que não pode haver segurança para os europeus se não houver segurança para a Rússia. A que garantias se refere Emmanuel Macron? Macron fala, nomeadamente, na criação de garantias para todos os Estados europeus sem excepção, incluindo para aqueles que não fazem parte da NATO ou de outro tipo de organizações militares, como é o caso da Geórgia, Moldávia e da Ucrânia. Esses países têm de ter garantias de que as suas fronteiras não são constantemente ameaçadas pelos países vizinhos, neste caso concreto pela Rússia.  Aqui há uma coisa muito importante que é a continuação do diálogo no seio do quarteto da Normandia, formado pela França, Alemanha, Rússia e Ucrânia, com vista a resolver o problema das regiões separatistas do Leste da Ucrânia.  No entanto, há já algumas discrepâncias sobre o que foi dito no encontro. Um comunicado do Eliseu dizia que Macron e Putin teriam chegado a acordo sobre a retirada das tropas russas estacionadas na Biélorrussia, após o fim das manobras militares, a ter lugar neste momento. O Kremlin já veio desmentir, referindo que esta conversa não é para acontecer entre Putin e Macron, mas sim entre Putin e a NATO, ou Putin e os Estados Unidos.  Por seu lado, o Presidente russo, Vladimir Putin, disse que algumas das ideias e propostas de Macron poderiam tornar-se bases para os próximos passos e repetiu que as principais preocupações de segurança da Rússia estavam a ser ignoradas. É legítima a preocupação da Rússia em ver a Ucrânia entrar na Nato? Do ponto de vista do direito internacional, a Rússia não pode ditar aos países a que blocos ou organizações eles podem fazer parte ou não. Isto não deve apenas dizer respeito à Rússia, mas a qualquer país do mundo. Claro que nós sabemos que, muitas vezes, esse princípio é substituído pelo princípio do mais forte, ou seja, quem tem força impõe os seus princípios.  Não penso que a questão da entrada da Ucrânia na NATO se coloque nos próximos 20 ou 30 anos. A Ucrânia tem problemas fronteiriços, nomeadamente na Crimeia e no leste da Ucrânia e isso é um impedimento para a entrada do país na NATO. Este problema da Ucrânia é um problema artificial, porque a questão da adesão da Ucrânia não se coloca. Por outro lado, Putin sabe perfeitamente que exigir que a NATO dê garantias de que a Ucrânia não fará parte da organização é uma exigência impossível de se conseguir. Vamos supor que a NATO aceita a adesão da Ucrânia à Aliança Atlântica, assina um papel, mas, como aconteceu muitas vezes na história, passados uns meses, uns anos, deixa de respeitar aquele papel. Uma das razões desta crise é precisamente a violação do direito internacional por ambas as partes em determinados momentos. O grande problema é encontrar uma nova  fórmula de coexistência pacífica entre a Rússia, os países vizinhos, a União Europeia, a NATO e os Estados Unidos.  Vladimir Putin está a lutar contra a possibilidade de um regime democrático se instalar à sua porta? Vladimir Putin está também a fazer isso. Putin está a fazer uma coisa que antes da invasão da Crimeia se achava impossível, que é virar os ucranianos contra os russos, porque são dois povos muito próximos. Se tiver lugar uma guerra, coisa que eu por enquanto continuo a acreditar que não vai acontecer, o ódio dos ucranianos contra os russos e vice-versa vai aumentar.  É preciso acabar com a narrativa de que a Rússia está a ser ameaçada pela Aliança Ocidental? Isso faz parte da própria propaganda russa. Por um lado, Putin tem alguma razão porque a NATO interveio em zonas que não eram suas, como foi o caso da Líbia, Síria e da própria Jugoslavia. Nesse sentido, a crítica até pode ser verdade. Em relação à Rússia é um problema falso. Vladimir Putin sabe que a NATO não vai invadir a Rússia e este receio em relação à Aliança Atlântica é muitas vezes artificialmente aumentado. Esta ideia é muito utilizada por Putin na sua política interna.  A Rússia continua a negar qualquer intenção de invadir a Ucrânia e, ao mesmo tempo, os Estados Unidos dizem ter provas de que a invasão pode vir a acontecer. Esta invasão é possível ou estamos diante de um cenário de guerra fria? Teoricamente tudo é possível. Se nós olharmos do ponto de vista racional, temos razões para dizer que a guerra não vai acontecer, mas nós estamos numa situação em que o Presidente Putin anunciou um dos traços da sua política externa, que passa pela pressão permanente sobre a NATO, a União Europeia e os Estados Unidos.  Essa pressão político-militar, psicológica e híbrida está em curso. Mas, daí até começar um conflito militar, acho que ainda há uma grande distância.  O problema é que quando se tem tropas frente a frente, o mínimo rastilho pode fazer rebentar com o barril de pólvora. Isso mantém-nos sob um clima de tensão permanente e é perigoso para todas as partes desse conflito.  A presença da Rússia na Moldávia, na Geórgia e na Ucrânia e as alianças reforçadas com a Bielorrússia, Arménia e Cazaquistão podem ser vistas como uma tentativa de Vladimir Putin reconstituir aquilo que pode do antigo império soviético? Eu acho que não. Agora, Putin poderá ir até onde o deixarem. Se Putin tem isso na cabeça, a Rússia está em maus lençóis. Mesmo se tem poder militar para isso, que tem, a Rússia não tem poder económico para suportar todos esses problemas que vão aparecer com uma política externa expansionista.    Ontem, durante a conferência de imprensa, um jornalista questionou o chefe de Estado russo sobre a presença das forças Wagner em África. Vladimir Putin não desmentiu a presença destas forças no continente, mas disse que o Estado russo não tem nada a ver com isso. Qual é a sua leitura? Num país com um poder tão concentrado que é uma autocracia, muito próximo de uma ditadura, a existência de empresas mercenárias é impensável, a não ser que sejam controladas pelo próprio poder. Putin mente quando diz que não tem nada  a ver com isso. A presença dos mercenários é uma forma que Putin utiliza para realizar a sua política de expansão em África.  A Rússia está a ter uma política externa que não coincide com a sua força económica, uma vez que a economia deste país corresponde a 20% da economia americana, ou menos até. Nós não estamos a falar de uma potência como a China, a Rússia não tem essa capacidade económica e essa política ofensiva se não for bem gerida, como não está a ser, pode provocar aquilo que aconteceu à União Soviética.   A Rússia está a ganhar muito dinheiro com o aumento do preço do gás e do petróleo, mas pode acontecer o que aconteceu em meados dos anos 80 do século passado. Quando o preço do petróleo desceu em flecha até aos 9 dólares por barril, o reformador Mikhail Gorbachev viu-se sem dinheiro para fazer reformas e a União Soviética desintegrou-se.  Esta terça-feira, 8 de Fevereiro, o Presidente francês está em Kiev para se encontrar com o seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky. Emmanuel Macron já prometeu às autoridades ucranianas que nenhuma decisão será tomada sem que a Ucrânia faça parte. Qual é o papel de Emmanuel Macron nesta crise? É um papel muito importante, mas muito difícil. Macron está a arriscar muito, eu diria que é uma atitude de coragem quando um político, a poucos meses de uma eleição presidencial, se mete numa confusão dessas.  O Presidente Macron além de tentar recuperar a importância do papel da União Europeia na solução deste conflito- também prestou grande atenção, Putin parece que estava de acordo- ao facto de se tomarem medidas de desanuviamento.  “Desescalar”, disse Macron.... Desescalar é o termo exacto. Eu espero que ele tenha êxito, porque a tarefa é muito complicada. A única forma de começar a desanuviar o conflito é fazer com que a Rússia e a Ucrânia comecem a implementar os acordos de Minsk. Se formos ver os acordos de Minsk há uma divergência muito forte na sequência da realização entre a Ucrânia e a Rússia.  Entre outros, os acordos de Minsk, prevêem o início de conversações para a formação de estatutos especiais para as regiões separatistas do leste da Ucrânia e revisão da Constituição do país, permitindo o início da federalização da Ucrânia.  No entanto, os ucranianos rejeitam linearmente a medida, sublinhando que foram obrigados a assinar os acordos de Minsk quando estavam numa situação de perdedores. Agora não permitem que o país se desintegre, como quer a Rússia. Se Volodymyr Zelensky aceitar esta condição pode ser afastado pela oposição. Há outra medida nos acordos de Minsk, aparece no fim, que prevê a entrega da fronteira entre a Rússia e a Ucrânia, nas regiões separatistas, aos guardas fronteiriços ucranianos. Porém, se Moscovo colocou este ponto para o fim, a Ucrânia quer que ele seja o primeiro a funcionar, considerando que assim poderia travar o fornecimento de armas por parte da Rússia e a entrada de militares russos no país. Serão estes pontos que vão tornar extremamente difícil a coordenação dos passos a dar e que vão dificultar a tarefa que Macron.