SCAP
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A SCAP – Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel é um evento elaborado e realizado por todos os cursos e setores da Unidade cujo objetivo principal é investir na formação geral da comunidade acadêmica e externa, promovendo a discussão de temas contemporâneos e interdisciplinares. A partir da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, o evento realiza debates acerca de questões contemporâneas e fundamentais para a formação humana. Em sua décima primeira edição, a SCAP apresenta como desejo de debate um conjunto de assuntos relacionados aos desafios enfrentados no Brasil contemporâneo e a urgência de pensarmos futuros alternativos para o presente. E é a partir deste desejo que chegamos ao tema Cartografia das Urgências: estratégias possíveis. Agora que mais uma barragem de rejeitos de mineradora se rompeu [quantas tragédias mais nós aguentaremos?]; agora que o desmatamento na Amazônia chega a proporções inadmissíveis; agora que as águas dos oceanos estão tomadas por lixo plástico; agora que as geleiras estão a derreter a passos rápidos e incontroláveis; agora que as abelhas e insetos polinizadores estão ameaçados de extinção; agora que não cessam de se manifestar fenômenos climáticos extremos como incêndios florestais, ciclones, inundações, estiagem prolongada; agora que populações inteiras são obrigadas a migrar como vítimas do regime climático e econômico; agora que caminhamos para uma trágica redução da biodiversidade; agora que grupos de pessoas acreditam que a terra é plana, que negam a existência do holocausto durante a Segunda Guerra Mundial e o golpe militar em 1964 no Brasil; é chegada a hora de indagarmos sobre alguns sinais do presente que podem ser decisivos no futuro. A conexão entre as urgências temáticas encontra na arte seu ponto de partida. Escolhemos sobretudo o cinema, entendendo-o como forma de pensamento. Assim como Cezar Migliorin, acreditamos que no mundo hiperpovoado de imagens e clichês, o cinema pensou e produziu intensamente sobre as formas de resistência com as imagens e nos permite, de maneira singular, pensar as narrativas que o transcendem, as formas de vida, as relações subjetivas, o Brasil e o mundo. Entendemos que refletir sobre as urgências, exige-nos não necessariamente o discurso da urgência, mas talvez de outra temporalidade , paciente e inventivo. Para isso, elegemos como centro da reflexão “as garantias de vida” e a sobrevivência de outras formas de vida, a partir de quatro eixos norteadores: a Sociedade, os Saberes, o Lugar e a Vida. Os eixos estão delineados do ponto de vista do humano, mesmo reconhecendo que todos os seres vivos devem ser considerados numa reflexão sobre a vida e a sobrevivência do humano. O cinema pode abrir uma passagem nesta reflexão: Pensando a Sociedade (eixo 1). Packyî e Tamanduá vivem nus com um facão, um machado cego e uma tocha no meio de uma área protegida na Floresta Amazônica, cercada por madeireiros, garimpeiros e fazendeiros. São índios nômades e sobreviventes do povo Piripkura (povo borboleta). E é somente pela presença deles que a área é mantida sobre proteção, mais precisamente sob “restrição de uso”. Jair Candor, servidor da Funai, realiza expedições periódicas para monitorar os vestígios que comprovem a vida deles na floresta. A cada dois anos é preciso justificar a restrição de uso da terra perante a Justiça. E sem a presença deles é muito provável que esta área de floresta ilhada pelo desmatamento provocado pelas madeireiras, pelas fazendas de gado e pelo garimpo, já teria sido destruída. Até onde vão conseguir resistir? Até onde a Funai vai existir e ter condições de proteger a vida destes sobreviventes e da floresta? Esta é a pergunta de Jair Candor, é a pergunta do filme e é também a pergunta do antropólogo Rubem Caixeta. A expedição realizada por Jair em 2016, daria origem ao fascinante e dilacerante documentário Piripkura (de 2017), de Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge, que acompanham a busca da equipe de Candor por vestígios e rastros que pudessem levar ao encontro da equipe de indigenistas com os indígenas. Esse encontro finalmente viria a acontecer quase ao final do filme, e por vontade unilateral dos dois, que saem de seu “isolamento voluntário” na mata da qual conhecem cada centímetro e na qual se “camuflam” com maestria, em busca de fogo para reacenderem a tocha, único artefato que carregam consigo e sempre junto aos corpos completamente nus. E é Jair Candor que conta no filme que a última vez que a tocha de Packyî e Tamanduá se apagou foi há quase 20 anos. É surpreendente e emocionante o encontro do filme com os dois Piripkura que não precisam de nada para viver, apenas da floresta em pé. Como diz Rubem Caixeta, “enquanto existirem [já que seu povo foi quase exterminado], é preciso garantir que existam do jeito que desejam, garantir a floresta na qual eles vivem e, talvez, com isso, sejamos nós, os brancos, que possamos viver um pouco mais, ou empurrar o fim do mundo um pouco mais pra frente.” Pensar com o filme é pensar sobre urgências do presente para um futuro possível. É pensar um mundo onde “tudo é necessário e nada é suficiente”, ou um mundo onde “muito pouco é necessário, quase tudo é suficiente”. O cinema é também um dispositivo de encontros. O “ver junto” na sala escura é deixar-se afetar pelo outro (da tela) e por uma reflexão conjunta (da tela e da sala) que nos mobilize e transforme. Pensando os Saberes (eixo 2). A Rainha Nzinga Chegou nos leva ao encontro de antigos reinos banto com suas coroas, séquitos e guardas. Os cosmos singulares de religiões de matrizes africanas e o reinado de Isabel Casimira, Rainha da Guarda de Moçambique Treze de Maio (re)existem. A história é conhecida por alguns: em um fétido porão de mais um navio negreiro cruzando o oceano, havia entre os futuros escravos que desembarcariam no Brasil, um rei africano. Monarca em sua terra trabalhou em todas as parcas horas livres para comprar sua carta de alforria e se livrar do cativeiro. Não parou de trabalhar até libertar seu filho e o restante da tribo. Chico-Rei agora era também católico, devoto de Nossa Senhora do Rosário. Volta a imperar em nova terra, distante do velho continente, e para retribuir a Graça, organiza as festas do Reinado. Já no século XX, Maria Casimira, também conhecida como Vovó Casimira, recebe um chamado divino e funda o Reino Treze de Maio. Com o filme, testemunhamos uma travessia de volta às terras dos reis do Congo. Isabel atravessa o Atlântico em busca de suas raízes e ancestralidade. Com empatia, compartilhamos de seus saberes e da beleza e inventividade de suas descobertas que tanto nos dizem da raiz do povo brasileiro. Pensando o Lugar (eixo 3). A travessia do Atlântico também se dá em Navios de Terra que transporta montanhas de Minas Gerais à China. Neste caso, é a viagem primeira, de degredo. O navio que leva o minério de ferro, leva consigo paisagens inteiras. A paisagem é um direito. Ocupa um lugar identitário, pois desempenha um papel na memória coletiva. Maurice Halbwachs nos conta que, o equilíbrio mental, segundo Auguste Comte, decorre em boa parte da permanência dos lugares, paisagens e objetos, com os quais lidamos diariamente. “É como se fosse uma sociedade silenciosa e imóvel, estranha à nossa agitação e às nossas mudanças de humor que nos dá uma sensação de ordem e quietude.” O lugar recebeu a marca do grupo e vice-versa. Então, todas as ações do grupo podem se traduzir em termos espaciais, e o lugar ocupado por ele é somente a reunião de todos os termos. Cada aspecto, cada detalhe desse lugar em si mesmo tem um sentido que é inteligível apenas para os membros do grupo, porque todas as partes do espaço que ele ocupou correspondem a outro tanto de aspectos diferentes de estrutura e da vida de sua sociedade, ao menos, naquilo que havia nela de mais estável. As montanhas são patrimônio coletivo, pertencem à história, memória e identidade de um povo. “Uma árvore nunca é apenas uma árvore. A natureza não é algo anterior à cultura e independente da história de cada povo.” No filme, Rômulo, marinheiro e ex-minerador, segue levando parte da montanha e, em momentos febris, encontra a memória e o espírito da terra. Em cada árvore, cada rio, cada pedra, estão depositados séculos de memória. Mesmo hoje, num mundo urbano invadido pela ciência e pela técnica, podemos constatar a sobrevivência de mitos que, vez por outra, emergem com toda a força primitiva no cotidiano das pessoas. Navios de Terra é o segundo filme da trilogia de Simone Cortezão (o primeiro é Subsolo) que é parte de sua pesquisa de doutorado. Nele, o deslocamento é em direção à China, país símbolo da pulsação destruidora do grande capital. Deslocado também está o protagonista, à deriva entre mundos. Poderíamos ainda dizer, exilado de uma paisagem que se fora. Pensando a Vida (eixo 4). Exilados também estiveram os personagens de Retratos de Identificação de Anita Leandro. Dois ex-guerrilheiros que lutaram contra a ditadura militar no Brasil se deparam, pela primeira vez, com fotografias tiradas pela polícia no momento de suas respectivas prisões. O passado retorna, com uma história de crimes que ainda não foram julgados. O exílio, as memórias, a dor, a vida. As ligações da história individual ao imediato político e ao agenciamento coletivo da memória do país atravessam o filme de Anita Leandro. Pensar com o filme é interrogar-se sobre a vida e sobre a história do país e seus ocultamentos. Os quatro filmes comportam uma pluralidade de questões. Pensar com os filmes é exercitar um deslocamento de nosso olhar, buscar sensibilizar nossos corpos de espectadores para outras sensibilidades e possibilidades. São muitas as urgências e estamos conscientes da incompletude da proposta. No entanto, confiantes na potência dos desdobramentos. Comissão Organizadora da XI SCAP.